No Rastro das Lutas: o passado e o presente de lutas das mulheres pescadoras

 

A luta das mulheres pescadoras já lhes garantiu direitos básicos, 

e segue em busca de um ambiente saudável


Por Gabriela Amorim
Brasil de Fato | 10 de Novembro de 2023 às 09:33 | Ver publicação original



Pescadoras em Suape - Foto: Méle Dornelas




Há muito pouco tempo atrás, as mulheres não podiam se cadastrar como pescadoras nas colônias. Foi apenas no final da década de 1980 que o Brasil teve a primeira mulher eleita presidenta de uma colônia de pescadores, Joana Mousinho, pescadora do município de Itapissuma (PE).

Joana Mousinho | Foto: Ingrid Campos

“No passado, quem fundava as colônias dos pescadores era a Capitania dos portos, visando em época de guerra ter os pescadores para usar como bucha de canhão. E nós mulheres, não tínhamos nem tempo, nem chance de chegar na porta da colônia. Não éramos vistas como pescadoras”, conta Joana Mousinho, também uma das fundadoras da Articulação Nacional das Pescadoras (ANP).

Marizelha Lopes, pescadora, quilombola e liderança na comunidade de Ilha de Maré, em Salvador (BA), também integrante da ANP, afirma que foram essas dificuldades e ausência de direitos que empurraram as mulheres pescadoras para as lutas. “A gente não faz luta porque a gente quer ou pra nós. O que a gente queria era viver na nossa comunidade tranquila e sem conflitos, né?”, diz.

Esta oitava reportagem da série No Rastro das Lutas: Movimentos populares abrindo caminhos para a democracia e direitos no Brasil conta justamente a história dessa longa caminhada feita pelas mulheres pescadoras na busca por direitos e garantia de seus modos de vida. Esta produção é uma parceria entre o Brasil de Fato e a Coordenadoria Ecumênica de Serviço, CESE, que completa 50 anos de atuação em 2023.

Joana Mousinho conta que foi apenas no ano de 1979 que ela e as demais pescadoras de Itapissuma conseguiram garantir o direito de ter o registro como trabalhadoras das marés, as primeiras mulheres do país a conseguirem tal feito. Mas, ao invés de serem registradas como pescadoras, foram registradas como marisqueiras. Dez anos depois, em 1989, ela se candidatou a presidenta da colônia de pescadores com uma chapa formada só por mulheres. E foi vencedora. Em 1993, ela se tornou também a primeira mulher a ser presidenta de uma federação de pescadores no país

“Foi muito difícil ser presidente de colônia na época, por causa do machismo. E tentaram me estuprar três vezes dentro da colônia. Eu fui forçada a dar lapada em homem e falar bravo, para poder me valorizar, porque se eu me fizesse de trouxa, os homens teriam feito de mim gato e sapato, mas eu não tive medo”, lembra Joana.

Ela se sente orgulhosa de ter aberto caminho para que outras mulheres pudessem construir os movimentos e organizações de pescadoras e pescadores. “Eu tenho muito orgulho de ter aberto esse caminho. Olho para trás e vejo que tem muitas mulheres hoje presidente de colônia, de associação e de federação. Para mim, é uma honra saber que foi a minha cidade, onde saiu a primeira mulher presidente de colônia do Brasil”, diz.
 
Mesmo diante de tantos percalços, Marizelha Lopes afirma que, entre as comunidades pesqueiras e mesmo em outras comunidades tradicionais, a maioria das lideranças são mulheres, que exercem um importante papel de defesa de suas comunidades e de proteção do meio ambiente. “Ttem sido fundamental o papel, a dedicação das mulheres nessa luta em defesa do direito a exercer mesmo esse papel que é extremamente importante, que é de pensar a organização do nosso povo e minimamente contribuir para que a gente tenha dias melhores”, acrescenta Marizelha.

Marizelha Lopes | Foto: arquivo pessoal




Direitos conquistados

Apesar de difícil, esse percurso tem resultado em importantes conquistas para as mulheres pescadoras. Joana Mousinho faz uma lista extensa de direitos que foram conquistados desde o início da organização das pescadoras até hoje. “Nossos direitos que nós não tínhamos, nós conquistamos”, afirma. Ela conta, por exemplo, que até 1993 as mulheres pescadoras casadas não tinham direito a se aposentar. Só após a morte do esposo elas poderiam passar a ser pensionista ou tentar se aposentar.

Além disso, Joana acrescenta ainda o direito à carteira de pesca, a participar dos grupos de trabalho nacionais, dos conselhos municipais e estaduais. E, em Pernambuco, uma Lei da Pesca, criada especificamente para tratar das políticas públicas para pescadores e pescadoras.

Se foi a luta no passado que garantiu a pescadoras e pescadores o acesso a direitos básicos como esses listados por Joana Mousinho, atualmente os movimentos e organização se vêm diante da urgência de enfrentar o modelo predatório de grandes empreendimentos que impactam diretamente na vida de suas comunidades.

“Em 2019, nós sofremos muito com o desastre do derramamento de petróleo em todo o Nordeste, mais o Espírito Santo e o Rio de Janeiro. E nem governo estadual, nem nacional cuidou de nós. Foram organizações, ONGs que nos apoiam, que nos ajudaram com cestas básicas”, conta Joana.

Ela lembra ainda do derramamento de rejeitos minerários no Rio Doce, que segue sem reparação total aos atingidos e atingidas, dentre eles, o próprio rio. “Tem gente doente por causa daqueles rejeitos de minério e também ainda por causa do petróleo. Quem entrou na beira da praia para limpar o petróleo, ficou doente. Tem as usinas eólicas que estão acabando com a pesca artesanal, principalmente para as mulheres, que estão indo menos pescar porque estão sem espaço”, conta.
 
Mesmo diante de lutas tão grandes, Joana aponta sonhos possíveis na construção de outros mundos. “O nosso projeto para o futuro é ver a articulação mais forte, ver as mulheres mais unidas, com saúde, todas elas com seus direitos conquistados e garantidos. O que nós queremos é ser ouvidas, ser respeitadas e nossos direitos garantidos e não violados”, diz.

Embora descreva um cenário atual assustador, com a perseguição e assassinato de importantes lideranças dos povos e comunidades tradicionais, como Mãe Bernadete, Marizelha concorda que é preciso seguir lutando pela construção desses outros mundos.
“Mas nunca foi fácil! E a gente vai continuar resistindo, fazendo luta… E vai surgindo outras Marias Filipas, outras Dandara, outras, enfim, outras guerreiras. Outras e outros Zumbis, outros Beneditos.Vai surgindo outras Elionice Sacramento, Joana Mousinho, Marizelha Lopes, Eliete de Paraguaçu, vai aparecendo. E a gente vai fazendo os enfrentamentos. É isso”, finaliza.

A série de reportagens e podcasts No Rastro das Luta é mais uma iniciativa que se relaciona com as ações dos 50 anos da CESE, trazendo uma abordagem voltada para sensibilização da sociedade acerca da contribuição social, cultural, econômica e política dos movimentos sociais no país. E conta com apoio do programa Doar para Transformar.

Edição: Alfredo Portugal

Nenhum comentário:

Postar um comentário